De longe vejo meu pai imerso em sua solidão,
pela idade já perdendo o prumo,
de tanto ver já perdendo o rumo,
às vezes anda pra lá e pra cá,
com um velho baralho nas mãos,
com muita ansiedade confere as cartas,
separa os naipes, embaralha e corta rente,
corta em cima, corta embaixo,
e distribui pros parceiros que já se foram
ou estão ausentes
e tudo se repete como uma doce paixão
que lhe aguça os sentidos,
e como uma luz lhe alumia os trilhos
e por um instante lhe devolve a vida,
ele sisudo, cheio de razões, gritando truco,
blefando a sorte num jogo de sedução,
entre vida e morte, a última cartada já não depende de si
é esperar pra ver: tudo ganhar ou tudo perder.
Pouco já lhe importa a jogada,
se foi um blefe ou de cartas marcadas:
Nada supera estar vivo: "viver é muito bom!"
De longe vejo meu pai deitado no roto sofá de sua memória,
ele calça as botas e coloca as esporas
e vagueia a esmo e a desoras nas invernadas de outros mundos
em seu cavalo alazão:
vai subindo ladeiras e descendo grotões,
vai varando pro fim do mundo
e aos poucos vai vazando pelas fendas de um tempo sem horas
como se atravessasse as corretezas de um rio brabo
e sete braças de profundo
ou como menino levado que se esconde
e brinca de pega-pega num tronco oco;
agora ele está olhando ao leu e contempla um céu cor de anil
e como visse em pleno dia estrelas baças,
vai contando os sonhos
e inventando histórias no vazio hostil de suas mãos esgarças
que nada enlaçam:
cabaça quebrada no meio da estrada,
já não guarda água, não tem serventia,
não vale de nada!
Nada supera estar vivo: "viver é muito bom!"
Cruza e descruza os dedos trêmulos abrindo covas e colocando cruzes,
trança as linhas do tempo, risca o vazio galopando antigas sendas
e ele vai sem ir em seu cavalo trotão que corre sem rédeas,
nas palmas de suas mãos e mais uma vez ele joga o laço
e golpeia o tempo e peia o espaço
com suas rezas e seu rosário tosco
chicoteia seus agouros
e esporeia a sangue seus lamentos
e ao tronco amarra os maus ventos
que já cheiram a mofo,a leite azedo
e a fortes unguentos,
mas o tempo é touro bravio que causa medo e fortes arrepios,
tem chifres pontudos e ancas largas de grande porte
que risca o chão de sul a norte com patas afiadas e investidas fortes
e vai arando fundo e revirando o silêncio com seu olhar de fúria e de má sorte
e vai deixando na poeira os rastros da vida,
um grito surdo de dor e um odor de morte,
que tudo enlaça: cabaça quebrada no meio da estrada,
já não guarda água, não tem serventia, não vale de nada!.
Nada supera estar vivo: "viver é muito bom!"
De longe vejo meu pai que vai remando na calada de suas rezas,
se benze contra todo o mal, se rodeia de santos,
de anjos e a Deus e à Virgem acende velas,
incendeia um feixe de novenas secas e queima incenso pra esconjuros
e prende na arca em um canto escuro um anjo decaído e sete espíritos impuros.
De longe vejo meu pai como um clarão na noite que se esvai,
lentamente vai deixando as margens como se fosse pra outro mundo
e sua velha canoa já se faz ao largo cortando as águas de um rio profundo
90 anos batendo remos contra as correntes de suas mágoas
e sozinho navegando sonhos de pura dor de amor antigo
por sete vezes amado
e por sete vezes sete vezes desamado e incompreendido
sua linda ainda se veste de chita, cheira a pó de arroz
e usa anáguas e um brinco de marfim;
nunca o vi chorar e de seus olhos jamais verteram lágrimas,
tudo foi escondido, em segredo bem guardado,
tudo formando mares
e abismos profundos abrindo fendas
no fundo de seu olhar de amar sempre cativo: cabaça quebrada no meio da estrada,
já não guarda água, não tem serventia,
não vale de nada!
Nada supera estar vivo: "viver é muito bom!"
E lá vai ele, já não olha para trás,
não sei se feliz ou magoado ou partindo a contragosto:
ipê amarelo plantado à minha porta,
vai perdendo suas folhas para florescer em agosto,
vai virando canoa que vai rio abaixo, à deriva de sua sorte,
cada vez mais rápido, cada vez mais distante,
e assim ele vai passando como se remasse dentro de mim,
aos poucos ele vai abrindo um vazio nas águas frias
que banham as margens de um rio largo e sem fim:
canoa parada à beira das águas, ou está furada
ou é fantasma de mágoas:
cabaça quebrada no meio da estrada,
já não guarda água, não tem serventia,
não vale de nada!
Nada supera estar vivo: "viver é muito bom!"
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